sábado, 30 de abril de 2011

Palestra de Paulo Henrique Amorim

Palestra do jornalista Paulo Henrique Amorim na abertura da Etapa Bahia da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, na FLEM (CAB), em Salvador, em 14/11/2009.


sexta-feira, 29 de abril de 2011

Tentando apagar a história da ditadura, por Vladimir Safatle

Para filósofo Vladimir Safatle, professor da Universidade de São Paulo (USP), há um lugar que resiste à memória do horror e a fazer justiça às vítimas: o Brasil. Nenhum agente do Estado ditatorial (1964-1985), envolvido em crimes como sequestro, tortura, estupro e assassinato de dissidentes políticos, foi a julgamento e preso.

Em março, será lançado o livro O Que Resta da Ditadura (editora Boitemço), organizado por Safatle e Edson Teles. A obra tenta entender como a impunidade se forma e se alimenta no Brasil. Para Safatle,o Brasil continua uma democracia imperfeita por resistir a uma reavaliação do período da ditadura militar (1964-1985) e por manter uma relação complicada entre os Três Poderes.

Agência Brasil: O Brasil tem alguma dificuldade com o seu passado?
Vladimir Safatle: Existe um esforço de vários setores da sociedade em apagar a ditadura, quase como se ela não tivesse existido. Há leituras que tentam reduzir o período à vigência do AI-5 [Ato Institucional nº 5], de 1968 a 1979. E o resto seria uma espécie de democracia imperfeita, que não se poderia tecnicamente chamar de ditadura. Ou seja, existe mesmo no Brasil um esforço muito diferente de outros países da América Latina, que passaram por situações semelhantes, que era a confrontação com os crimes do passado. É a ideia de anular simplesmente o caráter criminoso de um certo passado da nossa história.

ABr: Há quem diga que o Brasil não teve de fato uma ditadura clássica depois de 1964, mas sim uma “ditabranda” se comparada à da Argentina e a do Uruguai, por exemplo.
Safatle: Essa leitura é do mais clássico cinismo. É inadmissível para qualquer pessoa que respeite um pouco a história nacional. Afirmar que uma ditadura se conta pela quantidade de mortes que consegue empilhar numa montanha é desconhecer de uma maneira fundamental o que significa uma ditadura para a vida nacional. A princípio, a quantidade de mortes no Brasil é muito menor do que na Argentina. Mas é preciso notar como a ditadura brasileira se perpetuou. O Brasil é o único país da América Latina onde os casos de tortura aumentaram após o regime militar. Tortura-se mais hoje do que durante aquele regime. Isso demostra uma perenidade dos hábitos herdados da ditadura militar, que é muito mais nociva do que a simples contagem de mortes.

ABr: Qual o reflexo disso?
Safatle: Significa um bloqueio fundamental do desenvolvimento social e político do país. Por outro lado, existe um dado relevante: a ditadura de certa maneira é uma exceção. Ela inaugurou um regime extremamente perverso que consiste em utilizar a aparência da legalidade para encobrir o mais claro arbítrio. Tudo era feito de forma a dar a aparência de legalidade. Quando o regime queria de fato assassinar alguém, suspender a lei, embaralhava a distinção entre estar dentro e fora da lei. Fazia isso sem o menor problema. Todos viviam sob um arbítrio implacável que minava e corroía completamente a ideia de legalidade. É um dos defeitos mais perversos e nocivos que uma ditadura pode ter. Isso, de uma maneira muito peculiar, continua.

ABr: Então, a semente da violência atual do aparato policial foi plantada na ditadura?
Safatle: Não é difícil fazer essa associação, pois nunca houve uma depuração da estrutura policial brasileira. É muito fácil encontrar delegados que tiveram participação ativa na ditadura militar, ainda em atividade. No estado de São Paulo, o ex-governador Geraldo Alckmin indicou um delegado que era alguém que fez parte do DOI-Codi [Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna]. Teve toda uma discussão, mas esse debate não serviu sequer para ele voltasse atrás na nomeação. Se você levar em conta esse tipo de perenidade dos próprios agentes que atuaram no processo repressivo, não é difícil entender por que as práticas não mudaram.

ABr: Estamos atrás de outros países, como Argentina e África do Sul, na investigação e julgamento de crimes cometidos pelo Estado?
Safatle: Estamos aquém de todos os países da América Latina. Nosso problema não é só não ter constituído uma comissão de verdade e justiça, mas é o de que ninguém do regime militar foi preso. Não há nenhum processo. O único processo aceito foi o da família Teles contra o coronel [Carlos Alberto Brilhante] Ustra, que foi uma declaração simplesmente de crime. Ninguém está pedindo um julgamento e sim uma declaração de que houve um crime. Legalmente, sequer existiram casos de tortura, já que não há nenhum processo legal. E levando em conta o fato de que o Brasil tinha assinado na mesma época tratados internacionais, condenando a tortura, nossa situação é uma aberração não só em relação à Argentina e à África do Sul, mas em relação ao Chile, ao Paraguai e ao Uruguai.

ABr: Que expectativa o senhor tem quanto ao funcionamento da Comissão Nacional da Verdade, prevista no Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3), para apurar crimes da ditadura?
Safatle: Uma atitude como essa é a mais louvável que poderia ter acontecido e merece ser defendida custe o que custar. O trabalho feito pelo ministro Paulo Vannuchi [secretário dos Direitos Humanos, da Presidência da República] e pela Comissão de Direitos Humanos é da mais alta relevância nacional. Acho que é muito difícil falar o que vai acontecer. A gente está entrando numa dimensão onde a memória nacional, a política atual e o destino do nosso futuro se entrelaçam. Existe uma frase no livro 1984, de George Orwell, que diz: “Quem controla o passado controla o futuro”. Mexer com esse tipo de coisa é algo que não diz respeito só à maneira que o dever de memória vai ser institucionalizado na vida nacional, mas à maneira com que o nosso futuro vai ser decidido.

ABr: Mas, antes mesmo da criação da Comissão da Verdade, os debates já estão muito acalorados.
Safatle: O melhor que poderia acontecer é que se acirrassem de fato as posições e cada um dissesse muito claramente de que lado está. O país está dividido desde o início. Veja a questão da Lei da Anistia. O programa do governo [PNDH 3] em momento algum sugeriu uma forma de revisão ou suspensão da lei. O que ele sugeriu foi que se abrisse espaço para a discussão sobre a interpretação da letra da lei. Porque a anistia não vale para crimes de sequestro e atentados pessoais. A confusão que se criou demonstra muito claramente como a sociedade brasileira precisa de um debate dessa natureza, o mais rápido possível. Não dá para suportar que certos segmentos da sociedade chamem pessoas foram ligadas a esses tipos de atividades de “terroristas”. É sempre bom lembrar que no interior da noção liberal de democracia, desde John Locke [filósofo inglês do século 17], se aceita que o cidadão tem um direito a se contrapor de forma violenta contra um Estado ilegal. Alguns estados nos Estados Unidos também preveem essa situação.

ABr: O termo “terrorista” é usado por historiadores que não têm qualquer ligação com os militares e até mesmo por pessoas que participaram da luta armada. Usar a palavra é errado?
Safatle: Completamente. É inaceitável esse uso que visa a criminalizar profundamente esse tipo de atividade que aconteceu na época. A ditadura foi um estado ilegal que se impôs através da institucionalização de uma situação ilegal. Foi resultado de um golpe que suspendeu eleições, criou eleições de fachada com múltiplos casuísmos. Podemos contar as vezes que o Congresso Nacional foi fechado porque o Executivo não admitia certas leis. O fato de ter aparência de democracia porque tinham algumas eleições pontuais, marcadas por milhões de casuísmos, não significa nada. No Leste Europeu também existiam eleições que eram marcadas desta mesma maneira.Um Estado que entra numa posição ilegal não tem direito, em hipótese alguma, de criminalizar aqueles que lutam contra a ilegalidade. Por trás dessa discussão, existe a tentativa de desqualificar a distinção clara entre direito e Justiça. Em certas situações, as exigências de Justiça não encontram lugar nas estruturas do Direito tal como ele aparecia na ditadura militar. Agora, existem certos setores que tentam aproximar o que aconteceu no Brasil do que houve na mesma época na Europa, com os grupos armados na Itália e na Alemanha. As situações são totalmente diferentes porque nenhum desses países era um Estado ilegal. E não há casos no Brasil de atentado contra a população civil. Todos os alvos foram ligados ao governo.

ABr: Os assaltos a banco não seriam atentados às pessoas comuns que estavam nas agências?
Safatle: Todos os que participaram a atentados a bancos não foram contemplados pela Lei da Anistia e continuaram presos depois de 1979. Pagaram pelo crime. Isso não pode ser utilizado para bloquear a discussão. Dentro de um processo de legalidade, de maneira alguma o Estado pode tentar esconder aquilo que foi feito por cidadãos contra eles, como se fossem todos crimes ordinários. Se um assalto a banco é um crime ordinário, eu diria que a luta armada, a luta contra o aparato do Estado ilegal, não é. Isso faz parte da nossa noção liberal de democracia.

ABr: Que democracia é a nossa que tem dificuldades de olhar o passado?
Safatle: É uma democracia imperfeita ou, se quisermos, uma semidemocracia. O Brasil não pode ser considerado um país de democracia plena. Existe uma certa teoria política que consiste em pensar de maneira binária, como se existissem só duas categorias: ditadura ou democracia. É uma análise incorreta. Seria necessário acrescentar pelo menos uma terceira categoria: as democracias imperfeitas.

ABr: O que isso significa?
Safatle: Consiste em dizer basicamente o seguinte: não há uma situação totalitária de estrutura, mas há bloqueios no processo de aperfeiçoamento democrático, bloqueios brutais e muito visíveis. Existe uma versão relativamente difundida de que a Nova República é um período de consolidação da democracia brasileira. Diria que não é verdade. É um período muito evidente que demonstra como a democracia brasileira repete os seus impasses a todo momento. O primeiro presidente eleito recebeu um impeachment, o segundo subornou o Congresso para poder passar um emenda de reeleição e seu procurador-geral da República era conhecido por todos como “engavetador-geral”, que levou a uma série de casos de corrupção que nunca foram relativizados. O terceiro presidente eleito muito provavelmente continuou processos de negociação com o Legislativo mais ou menos nas mesmas bases. Chamar isso de consolidação da estrutura democrática nacional é um absurdo. Os poderes mantêm uma relação problemática, uma interferência do poder econômico privado nas decisões de governo. Um sistema de financiamento de campanhas eleitorais que todos sabem que é totalmente ilegal e é utilizado por todos os partidos sem exceção.

Fonte: Carta Capital

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Clarice Herzog: “Eu não anistio os torturadores do Vlado”

Entrevista com a publicitária Clarice Herzog, viúva de Vladimir Herzog.
Por Cylene Dworzak Dalbon

25 de outubro de 1975, Rua Tutóia, cidade de São Paulo. Nas dependências do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), um homem é torturado com pancadas e choques elétricos. Seus companheiros, na sala ao lado ouvem seus gritos.

O homem recusa-se a assinar um suposto depoimento por não admitir que as informações constantes naquele pedaço de papel sejam verdadeiras. Ele não escrevera nenhuma palavra daquilo. Em um ato de indignação, rasga o papel. E num ato de maior indignação ainda, mesclado a ira, seu torturador o esbofeteia. Os amigos, na outra sala, não ouvem mais seus gritos.

Algumas horas mais tarde, dentro de uma cela no mesmo departamento, uma foto do homem morto, amarrado por uma tira de pano em um pequeno pedaço de ferro no alto da cela. O Inquérito Policial Militar, IPM dá como causa da morte suicídio por enforcamento. Esta era a versão oficial sustentada pelos militares e ignorada pela família. Vladimir Herzog havia sido assassinado e seus torturadores haviam montado uma farsa grotesca para encobrir a barbaridade que haviam feito.

O relato acima caberia muito bem em um romance policial. Mas não é ficção. O fato tenebroso e covarde existiu. Quando os gritos silenciaram, Vladimir Herzog estava morto. Inicia-se então, o começo da luta pela abertura política na história ditatorial que acabaria de fato, 10 anos depois, em 1985. Vlado, como era conhecido por familiares e amigos, é hoje um símbolo, e não só para os jornalistas. E está tão vivo na memória de quem presenciou e viveu a história, como na de pessoas que se apaixonam pela emocionante história de vida de Vlado e se revoltam com a monstruosidade e tristeza de sua morte.

Em conversa exclusiva com o Jornal Segundas Intenções, a publicitária Clarice Herzog fala do terrível outubro de 1975, quando seu marido, o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado dentro das dependências do DOI-CODI pelos órgãos de repressão da ditadura.


O outubro de 1975


“O outubro de 1975 foi complicadíssimo. Ficaram na memória as coisas relacionadas ao que aconteceu com o Vlado. No começo do mês vários jornalistas foram presos. Estava havendo inclusive um encontro nacional de jornalismo e mesmo assim as prisões continuavam. Foram presos muitos jornalistas ligados ao Vlado e da TV Cultura, o Markum, o Anthony, Rodolfo Konder, o Sérgio Gomes. Foi um momento extremamente tenso. Esperávamos que o Vlado fosse preso devido a essas prisões, e discutimos muito sobre qual seria o teor de seu depoimento – o que nunca passou pelas nossas cabeça é que ele acabaria sendo morto. Vlado, naquele momento estava no Partido [Comunista Brasileiro]. Ele nunca foi muito ligado à política, ele não era comunista – aliás era bastante crítico ao partido. Na verdade, o Vlado era um intelectual, ligado a teatro, cinema, que desejava um mundo melhor, um mundo onde as idéias pudessem ser discutidas e respeitadas. Naquela época existiam duas forças contra a ditadura militar: uma era a igreja e a outra o PCB. Como o Vlado era judeu, optou pelo Partido – a sua área de atuação como militante era a discussão da situação cultural no país – a produção artística, nos vários níveis, estava sendo totalmente massacrada pela censura. O motivo da forte repressão contra o PCB, é que ele estava se tornando uma nova e forte frente e enfrentando a ditadura. Mas aconteceu o que não esperávamos que acontecesse: afinal, apesar do Vlado estar envolvido com o partido comunista, tínhamos empregos, passaporte, residência fixa e não éramos envolvidos com a luta armada.”


Londres


“Depois do término do contrato do Vlado com a BBC em Londres, eu retornei primeiro com as crianças e o Vlado ficou mais três meses fazendo um curso sobre TV Educativa. Era pra ele chegar ao Brasil dia 15 de dezembro de 1968 (o AI-05 foi no dia 13). Mas ele não chegou. Antes de vir para o Brasil, ele passou por Roma para se despedir do [Fernando] Birri [cineasta e guru de Vladimir Herzog]  e lá em Roma viu a manchete no jornal: “Ditadura Militar no Brasil”. E aí ficou a dúvida, se voltava pra Londres, se vinha para o Brasil. E durante duas semanas permanecemos nessa dúvida. Mas a sensação que nós tínhamos é, mesmo com o AI5 seria possível fazer alguma coisa aqui, valia a pena tentar.


O grito da sociedade e o silencio dos judeus


“A morte do Vlado foi um basta. A sociedade civil percebeu que aquilo foi a gota d´água. Na hora em que ele morreu houve uma movimentação. Ele era muito conhecido no Brasil e no exterior; então todo mundo ficou sabendo.

A comunidade judaica nunca deu apoio pra nada. Isso é muito importante que se deixe claro. Não havia rabino no velório nem no enterro do Vlado. O culto ecumênico aconteceu graças ao D. Paulo [Evaristo Arns] – aliás, Dom Paulo também esteve presente no velório. Não houve apoio nenhum da comunidade judaica, muito pelo contrário. “Tive apoio de amigos judeus, mas não da comunidade enquanto instituição.”


Correio Brasiliense


“A maneira como foi feita a matéria foi muito sensacionalista, o Correio Brasiliense foi ‘marrom’. Realmente, reconheci a foto de frente como sendo do Vlado; as outras não. A pessoa fotografada era muito parecida com ele, mas houve um engano da minha parte, que só se esclareceu quanto o Nilmário Miranda  (Ministro da Comissão dos Direitos Humanos) e o General chefe da segurança do presidente Lula estiveram aqui e me mostraram o dossiê completo da pessoa que tinha sido fotografada e aí percebi que realmente aquele não era o Vlado.”


A ação judicial


“Foi um processo importante porque houve um resgate da justiça brasileira, do judiciário, e isso fez com que outras famílias também entrassem com o processo contra a União. Não pleiteei indenização porque queria que fosse reconhecido publicamente que o Vlado não havia se matado e sim, que havia sido assassinado; e eu tinha medo de que me pagassem a indenização sem qualquer processo porque afinal o Vlado estava sob proteção do Estado.


Clara Charf e Carlos Marighela


“Quando voltei de Londres, eu queria ajudar de alguma forma. Fui então apresentada a Clara Charf que na época tinha um nome de guerra, que eu não lembro qual era. Ela se encontrava, vez ou outra, com o companheiro dela. E quando ia com ele em casa, o Vlado e eu permanecíamos no andar de cima – não queríamos saber quem era a pessoa que estava na clandestinidade. Mas, um dia tive um contato breve com o companheiro da Clara porque ela comentou com ele que eu havia perdido um tio assassinado durante o Estado Novo. Então, ele subiu as escadas e me disse: fui companheiro do seu tio na prisão e posso lhe dizer que ele foi um combatente muito corajoso. E eu não sabia que ele era o Marighela, e nem queria saber. Eu tinha medo de me envolver demais.”


Anistia


“Eu não anistio os torturadores do Vlado. A minha opinião sobre anistia é essa.”


32 anos depois


“Este ano o Vlado completou 70 anos. Dói. É uma dor amenizada, claro, mas ela sempre existe. É uma cicatriz que fica. Pode não estar mais inflamada, mas cada vez que se olha pra ela, lembra-se de toda a dor.”

sábado, 23 de abril de 2011

Nos porões da tortura

Reportagem do Jornal da Record sobre centros clandestinos de tortura durante o regime militar no Brasil.
Reportagem de Rodrigo Vianna.
Produção de Tony Chastinet, Luiz Malavolta e Paulo T.
Edição de Ângela Canguçu.
Exibido em 16, 17, 18 e 19 de agosto de 2010

A primeira reportagem conta a história do sítio "31 de março de 1964". A segunda reportagem conta a história do empresário que emprestou o sítio usado pelos militares como centro clandestino de detenção e tortura. A terceira reportagem mostra a rede de contatos do empresário que emprestou o sítio usado pelos militares como centro clandestino de detenção e tortura. A última reportagem mostra o centro clandestino de torturas de Petrópolis (RJ) e a Operação Condor.


sexta-feira, 22 de abril de 2011

PROCESSO


PROCESSO

Foi você, seu filho,
(soa um tapa, voa uma pata)
Seu pai, sua mãe, seu amigo,
(e o fio corre para a tomada)

Foi você, seu cão
(a mão no interruptor)
Sua namorada, seu irmão,
(o murro, o urro ininterrupto)

Foi você, seu maldito,
foi seu sangue
vermelho, (água, sal,
o mergulho no tanque)

Foi você, sua mão, seu olho,
sua unha, seu dente, seu corpo,
seu pulso sem impulso, seu lábio roxo,
seu coração sem ação, seu morto.

Otoniel Santos Pereira

Retirado do Jornal “EX-”

Jornal EX-: Produzido entre 1973 e 1975, com periodicidade mensal, o jornal EX- foi um dos expoentes da chamada mídia alternativa durante a ditadura militar, reconhecido por suas reportagens aprofundadas, textos ácidos e imagens provocativas.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

O cara estava certo, e nós? quando vamos acertar?


Frei Betto

HERZOG, o último diálogo

- Então, cara, não vai entregar nomes e endereços de seus camaradas no Partido Comunista?

Vladimir Herzog havia sido torturado horas no DOI-CODI de São Paulo. Ao ser intimidado a prestar depoimento, a 24 de outubro de 1975, não vivia clandestino, morava em endereço fixo, trabalhava como jornalista, era casado e pai de dois filhos. Ao ser convocado a ir à polícia, imaginou que ficaria ali tempo suficiente para prestar esclarecimentos. Retornaria para dormir em casa. Agora, tinha os pulsos marcados por fios de corrente elétrica e lesões provocadas pelos choques na uretra, no ânus e sob as unhas.

- Já disse que não estou ligado a nenhum partido - insistiu Vlado. - Tenho formação de esquerda, sou contra a ditadura, mas não exerço militância.

- Você não tem escolha, cara! Ou abre o bico ou te suicidamos. Se quer bancar o herói, vai se dar mal.

- Quem vai se dar mal são vocês. Morrer sei que vou mesmo, um dia, como todo mundo. Mas vocês, torturadores, assassinos, morrerão execrados. Nenhuma ditadura é eterna. Quando o Brasil retornar à democracia, terão de prestar contas do assassinato de Rubens Paiva, do martírio de Frei Tito, e de tantos desaparecimentos e eliminações extrajudiciais.

- Você acredita mesmo nisso? Deixa de ser trouxa, cara. Antes que a democracia volte, os generais farão uma lei nos eximindo de qualquer responsabilidade. Uma anistia geral e irrestrita. Por que, no Brasil, oficiais superiores são inimputáveis. Então, ninguém vai poder apurar nada. Se combatemos a subversão do nosso jeito, é para defender o Estado. A lei somos nós. Nós decidimos o que é certo ou errado.

- Engano seu. O futuro não esquece. Os crimes dos nazistas foram investigados e penalizados ao findar a Segunda Guerra Mundial. Enquanto houver um carrasco nazista refugiado mundo afora, ele será procurado e, capturado, sancionado. Tortura e extermínio extrajudicial são crimes de lesa-humanidade, imprescritíveis.

- Imprescritíveis na sua cabeça, cara. Aqui no Brasil a coisa é diferente. Os militares são intocáveis. Quem se atreve a desafiar os generais? Eles estão acima da lei. E nós, que sujamos as mãos sob ordens deles, temos costas largas.

- Posso sair morto daqui, suicidado por vocês, a exemplo de tantos que passaram pelos porões da ditadura, como Virgílio Gomes da Silva. Mas uma coisa é certa: apesar da venda nos olhos, a Justiça não é cega. Militares não sentam nas poltronas togadas do Supremo Tribunal Federal. Um dia está corte haverá de reconhecer que responsáveis por crimes na ditadura não podem ser anistiados. Só merece anistia quem, primeiro, foi apontado como criminoso e devidamente castigado.

- Você, cara, como todo esquerdista, é um sonhador. Acha que, se um dia, eu fosse passar vergonha de fazer o que faço estaria aqui sujando as mãos de sangue? Fique tranquilo, a gente vai fazer a lei pra passar a borracha em todo esse período de exceção. Vocês também não serão punidos.

- Como não seremos? Nós já estamos sendo severamente punidos por lutar pela volta da democracia. Punidos com prisão, tortura, morte, desaparecimento, exílio, censura. Mas tenho confiança de que, cedo ou tarde, se fará justiça no Brasil.

- Cara, você é um idealista! Acha que neste país tem juiz com culhão para enfrentar os militares? Se um dia essas instituições babacas que ficam por aí defendendo os direitos humanos, como a OAB e a CNBB, exigirem apuração, vão quebrar a cara. No Brasil a lei da força falou sempre mais alto que a força da lei. Não haverá juiz com coragem de nos levar à barra nos tribunais. Aqui, pra quem está acima da carne seca, tudo termina em pizza. Dá-se um jeitinho. No Brasil, o poder sempre souber fazer omelete sem quebrar os ovos.

            Vladimir Herzog foi suicidado no dia 25 de outubro de 1975. Tinha 38 anos. Segundo a versão do exército, enforcou-se com o próprio cinto. Regras do DOI-CODI determinavam que nenhum prisioneiro podia ser recolhido à cela de posse de cinto, gravata e cadarço de sapatos.
            No dia 30 de abril de 2010, o STF decretou a segunda morte de Vladimir Herzog ao absorver, por 7 votos a 2, os crimes hediondos cometidos pela ditadura militar brasileira ao longo dos 21 anos.

            Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Roco), entre os livros. http://freibetto.org.br

Edição de junho de 2010 – Caros Amigos.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Basta de Cinismo

Mensagem do escritor Agassiz Almeida ao Ministro da Defesa Nelson Jobim

O que carrega esta mensagem dirigida a V. Excia? Indignação e vergonha.
No mês passado, na ocasião em que visitava a Universidade Complutense de Madri, tomei conhecimento da noticia, com ampla repercussão na Europa, que o Brasil fora condenado pela ONU e a OEA - Organização dos Estados Americanos, como país conivente com crimes de lesa-humanidade praticados durante a Ditadura Militar (1964-1985).

Parece que aqueles ontens de 1987, quando juntos estivemos nos proscênios da Assembleia Nacional Constituinte, chegam aos dias de hoje e nos interrogam: Senhor ministro, qual é o seu papel na cena atual à frente do Ministério da Defesa?

O que assistimos? Um falastrão a desandar num enorme contrassenso.
Enquanto V. Excia procura aparelhar as Forças Armadas com alta tecnologia, queda-se atrelado a uma retrógada e superada mentalidade necrosada nas décadas de 50 e 60 do século passado.

Dispa-se, senhor ministro, da pavonice em se vestir de general em combate e empreenda a verdadeira e autêntica guerra: abra os arquivos da repressão à História para que o povo brasileiro se orgulhe daqueles que resistiram à tirania militar.

Queremos reencontrar os passos das gerações de 60 e 70 do século passado, cuja inquietude e arrebatado fervor as fizeram intimoratas nas porfias.
Oh, gerações de sonhadores! Elas mergulhavam em todos os abismos, tanto nos que arrastavam ao bem como aqueles que levavam ao ignoto.

Oferecemos na nossa juventude a paixão pelas grandes causas e pagamos às forças ditatoriais o tributo de graves adversidades. Na tarde crepuscular de nossas vidas, não nos movem propósitos subalternos e inconfessáveis.

Como retratar Nelson Jobim a quem dirijo esta mensagem?
O constituinte de 1988, com quem convivi como sub-relator na Assembleia Nacional Constituinte, ou o atual ministro da Defesa de 2011? Vulto camaleônico de todas as situações. Altamente inteligente, com um forte poder de persuasão. Sabe joguetear com os homens e os fatos, evitando sempre afrontar interesses de forças poderosas. Um Fouché dos novos tempos.
Que exímio prestidigitador!

Quando apresentei, juntamente com outros constituintes, emenda à Assembleia Nacional Constituinte criando o ministério da Defesa, V. Excia, após ouvir o general Leônidas Pires, negaceou a constituição deste ministério. Quando encaminhei emenda tipificando a tortura como crime de lesa-humanidade, hoje texto constitucional, imprescritível e não passível de anistia ou indulto, qual a sua posição àquela época e hoje? Postura de atrelamento a um grupo de militares, cuja visão petrificou-se nas primeiras décadas do século XX, sob os passos ideológicos da escola militar alemã.

As forças vivas da Nação, as novas gerações, os jovens comandantes militares não podem ser condenados a esta mordaça com a qual se pretende vedar o processo dialético do país.

O que falam os retardatários da história? Que a Comissão Nacional da Verdade, projeto que tramita no Congresso Nacional, é um revanchismo.
Basta de ressuscitar este falso maniqueísmo. O homem do século XXI globalizou a sua visão. Só os animalizados a carregar viseiras quedam-se ultrapassados por sentimentos doentios. Heróis e valentes de suas proezas. Infortunados Sanchos Panças, vivem a procura do primeiro Dom Quixote.

Os países desenvolvidos do mundo que pactuaram convenções internacionais em defesa dos direitos humanos condenam os seus membros e integrantes que violentam as suas normas. O nosso país é uma exceção nauseabunda.

Numa interface, ponhamos os olhares nas gerações de 60 e 70 do século passado. Juvenis personagens, eles se moviam num quadro utópico de sonhos...
Oh, gerações de arrebatadores ideais!

Contra uma juventude inteligente a ditadura dos porões desencadeou sinistra perseguição e monstruosos crimes.

Onde estava e quem carregava aquele imenso sonho? Estava na ofensiva vietnamita do TED contra as poderosas forças do império norte-americano; estava na rebelião dos negros nos EUA; sonhava na insurgência estudantil no maio francês; estava nas Ligas Camponesas do Nordeste do Brasil; estava, afinal, – e aí ela foi magnânima porque se imolou contra uma feroz ditadura militar - no Araguaia. Oh, juventude! Como construístes com sangue o direito da humanidade caminhar e não ser escrava de tiranos. Que epopeia de heroísmo escrevestes!
Há um quê de martirológico na resistência do Araguaia.

Assombra-me a imperiosa construção de coragem daquele templo de luta erguido em plena selva amazônica.

Desconhecem os tipos abjetos da história que a mocidade tem por fanal o infinito. Há uma truculência atrevida e medíocre que tenta deter o caminhar das gerações. Ela rosna no seu passado oprobrioso e teme os clarões da verdade e da justiça.
Estão aí os sonâmbulos da ditadura militar a berrar em ecos vindos dos porões da tortura: Não! Não! A Comissão da Verdade é um revanchismo!

O mundo está carregado desses vultos. Eles renegam o heroísmo, a virtude e as grandezas: A Sócrates impuseram a cicuta; a Cristo a crucificação no madeiro; a César apunhalaram no Senado; Dante amargou o pó salinoso do desterro; Bonaparte a solidão melancólica em Santa Helena; Carlos Lamarca a execução covarde nos confins da Bahia; Pedro Fazendeiro o sequestro e desaparecimento do seu corpo; João Pedro Teixeira “cabra marcado para morrer;” à juventude heroica do Araguaia, a tortura e o desaparecimento infame dos seus corpos.

Queremos a verdade histórica à altura de uma nação que ocupa a 7ª economia do mundo. Deram-nos o atraso e o obscurantismo como resposta: A Comissão da Verdade é uma desforra. Isto é um corporativismo medievalesco. Agride as convenções internacionais e ferreteia o Brasil como uma republiqueta africana. Algum dia, o que a nação espera encontrar quando se rasgar a mordaça que encobre os arquivos dos porões? Um monturo de ignomínia. Tipos humanos a desfilar a covardia de suas ações.

Basta de cinismo! Rompa-se este embuste que engolfa o povo brasileiro. Abram-se os arquivos trevosos da tirania militar, para que não se desate na vida da nação um abismo sobre o qual paire um silêncio eterno.

Despeço-me de V. Excia e, ao mesmo tempo, dirijo-lhe este apelo: Fuja do autorretrato de se fazer um Francisco Campos redivivo, este infeliz jurista subserviente à ditadura Vargas.

Saudações históricas do povo brasileiro.
Agassiz Almeida

Agassiz Almeida, deputado constituinte de 1988. Um dos autores de emendas à Assembleia Nacional Constituinte que criou o Ministério de Defesa e tipificou a tortura como crime imprescritível e não passível de anistia ou indulto. Escritor do grupo Editorial Record. Autor destes clássicos da literatura brasileira: A República das elites e A Ditadura dos generais. Promotor de Justiça aposentado.


Autor: Agassiz Almeida