domingo, 22 de maio de 2011

WikiLeaks do golpe de 64

Este é o WikiLeaks do golpe de 1964, que devemos ao The National Security Archive. Tradução de telegrama de 27.03.1964, do então embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon, a superiores em Washington:

TOP SECRET

Pessoal do embaixador Gordon. Favor passar imediatamente para o secretário de Estado Rusk, o secretário-assistente Mann, Ralph Burton, secretário de Defesa McNamara, secretário-assistente de Defesa McNaughton, general Maxwell Taylor, diretor da CIA John McCone, coronel J.C. King, Desmond Fitzgerald, na Casa Branca para Bundy e Dungan, passar na zona do Canal (onde ficava o Comando Militar Sul dos Estados Unidos) ao general O’Meara. Outra distribuição só com aprovação dos acima citados.
1. Desde que retornei ao Rio em 22 de março eu tenho estudado a situação brasileira profundamente com assessores civis e militares daqui, convocando os chefes de missão em São Paulo e Brasília para ajudar e fazendo alguns contatos com brasileiros bem informados.
2. Minha conclusão é de que Goulart está definitivamente engajado em uma campanha para assumir poderes ditatoriais, aceitando a colaboração do Partido Comunista Brasileiro e outros grupos revolucionários da esquerda para esse fim. Se ele for bem sucedido é mais do que provável que o Brasil caia sob controle completo dos comunistas, ainda que Goulart possa ter a esperança de se voltar contra os apoiadores comunistas e adotar um modelo peronista, o que pessoalmente acredito que ele prefere.
3. As táticas imediatas da guarda palaciana de Goulart estão concentradas em pressões para garantir no Congresso reformas constitucionais inalcançáveis por meios normais, usando uma combinação de manifestações nas ruas, ameaças de greve ou greve, violência rural esporádica e abuso do enorme poder financeiro discricionário do governo federal. Isso vem junto com uma série de decretos executivos populistas, de legalidade qüestionável, e uma inspirada campanha de rumores sobre outros decretos, calculada para amedrontar elementos da resistência. Especialmente importante nessa conexão é a habilidade do presidente de enfraquecer a resistência no nível estadual ao segurar financiamento federal essencial. O governo também tem submetido emissoras de rádio e TV à censura parcial, aumentado o uso da agência de notícias nacional e requisitado tempo para transmitir propaganda reformista, fazendo ameaças veladas contra a imprensa de oposição. O propósito não é só de assegurar reformas econômicas e sociais construtivas, mas desacreditar a atual Constituição e o Congresso, assentando as bases para um golpe de cima para baixo que pode ser ratificado por um plebiscito fraudado e a reescrita da Constituição por uma Assembléia Constituinte fraudada.
4. Eu não descarto inteiramente a hipótese de que Goulart seja amedrontado a desistir dessa campanha e que termine normalmente seu mandato (até 31 de janeiro de 1966), com eleições presidenciais sendo realizadas em outubro de 1965. Essa seria a melhor saída para o Brasil e para os Estados Unidos, se acontecer. Os compromissos de Goulart com a esquerda revolucionária são agora tão profundos, no entanto, que as chances de alcançar esse resultado através da normalidade constitucional parecem ser de menos de 50%. Ele pode fazer recuos táticos para tranquilizar a oposição novamente, como fez no passado. Há alguns sinais de que isso aconteceu nos últimos dias, como resultado da maciça manifestação da oposição nas ruas de São Paulo no dia 19 de março, a hostilidade declarada de governadores de estados importantes e ameaças e descontentamento de oficiais, especialmente do Exército. Mas a experiência passada mostra que cada recuo tático permite ganho considerável de espaço e o próximo avanço vai além do anterior. Com o tempo do mandato acabando e os candidatos à sucessão entrando ativamente em campo, Goulart está sob pressão para agir mais rapidamente e com menor cálculo dos riscos. O desgoverno também acelera a taxa de inflação a ponto de ameaçar a quebra da economia e a desordem social. Um salto desesperado por poder ditatorial pode acontecer a qualquer momento.
5. O movimento Goulart, incluindo seus afiliados comunistas, representa a minoria – não mais de 15 a 20 por cento do povo ou do Congresso. Sistematicamente assumiu o controle de muitos pontos estatégicos, notavelmente na Petrobras (que sob um decreto de 13 de março agora assumirá as cinco últimas refinarias privadas ainda não sob seu controle), no Departamento de Correios e Telégrafos, na liderança de sindicatos do petróleo, das rodovias, dos portos, da marinha mercante, das recém-formadas associações de trabalhadores rurais e de algumas outras indústrias-chave, a Casa Civil e Militar da Presidência, unidades importantes dos ministérios da Justiça e Educação e elementos de muitas outras agências de governo. Nas Forças Armadas, há um grande número de oficiais esquerdistas que receberam privilégicos e posições-chave de Goulart, mas a grande maioria é de legalistas e anti-comunistas e há um antigo grupo de apoiadores de um golpe na direita. A esquerda tem tentado enfraquecer as Forças Armadas através da organização subversiva de oficiais da reserva e de pessoal alistado, com resultados significativos especialmente na Força Aérea e na Marinha.
6. No dia 21 de março eu tive uma conversa com o secretário (de Estado) Rusk para avaliar a força e o espírito das forças de resistência e as circunstâncias que podem causar violência interna e um confronto. Acredito que desde o comício de Goulart com os sindicalistas no Rio, em 13 de março (o comício da Central do Brasil) houve uma polarização de atitudes, com apoio à Constituição e ao Congresso, para reformas apenas dentro da Constituição e a rejeição do comunismo, que vem de um grupo de governadores: Lacerda da Guanabara, Adhemar de Barros de São Paulo, Meneghetti do Rio Grande do Sul, Braga do Paraná e, para minha surpresa, Magalhães Pinto, de Minas Gerais. Eles foram fortalecidos pela clara declaração do ex-presidente marechal Dutra e pelo discurso de Kubistchek em sua indicação como candidato (à presidência). O grande comício pró-democracia em São Paulo, no dia 19 de março, organizado principalmente por movimentos de mulheres, deu um importante elemento de demonstração de massa pública, com reações favoráveis no Congresso e nas Forças Armadas.
7. Existe uma interdependência recíproca de ação entre o Congresso e as Forças Armadas. A resistência do Congresso a ações ilegais do Executivo e às exigências abusivas para mudança constitucional do presidente depende da convicção dos congressistas de que eles terão cobertura dos militares se assumirem posição. A tradição legalista das Forças Armadas é tão forte que elas desejariam, se possível, cobertura do Congresso para qualquer ação contra Goulart. A ação do Congresso é uma chave importantíssima da situação.
8. Enquanto uma clara maioria do Congresso desconfia das propostas de Goulart e despreza a sua evidente incompetência, o consenso presente dos líderes congressistas anti-Goulart é de que a maioria absoluta da Câmara dos Deputados não será obtida para um impeachment. Eles também se opõem à mudança do Congresso de Brasília acreditando que isso diminui o prestígio já abalado, embora mantenham aberta a possibilidade de um recuo dramático para São Paulo ou outro lugar como último recurso no caso de se aproximar uma guerra civil ou de uma guerra civil em andamento. Eles agora focam a aprovação de algumas reformas amenas como forma de enfrentar a campanha de Goulart contra o Congresso e avaliam outras maneiras de mostrar resistência ativa. Há pequena possibilidade de aprovação de uma lei de plebiscito, delegação de poderes (ao presidente), legalização do Partido Comunista, direito de voto para os analfabetos ou outras mudanças buscadas por Goulart.
9. De toda forma, a mudança mais significativa é a cristalização de um grupo de resistência militar sob a liderança do general Humberto Castello Branco, chefe de estado-maior do Exército. Castello Branco é um oficial altamente competente, discreto, honesto e respeitado, que tem forte lealdade aos princípios legais e constitucionais e até recentemente evitava qualquer aproximação com conspiradores anti-Goulart. Ele se associou com um grupo de outros oficiais bem colocados e está assumindo agora o controle e a direção sistemática de uma ampla mas ainda descentralizada organização de resistência de grupos militares e civis em todas as partes do país.
10. A preferência de Castello Branco seria de agir somente em caso de provocação inconstitucional óbvia, isso é, uma tentativa de Goulart de fechar o Congresso ou intervenção em um dos estados da oposição (Guanabara ou São Paulo sendo os mais prováveis). Ele reconhece, no entanto (e eu também) que Goulart pode evitar uma provocação óbvia, enquanto continua a se mover em direção a um fait accompli irreversível através de greves manipuladas, enfraquecimento financeiro de estados ou um plebiscito – incluindo voto para os analfabetos – para dar apoio a um tipo de poder bonapartista ou gaulista. Castello Branco está se preparando, portanto, para um possível movimento no caso de uma greve geral comandada pelos comunistas, outra rebelião dos sargentos, a convocação de um plebiscito que enfrente oposição do Congresso ou mesmo alguma grande medida governamental contra líderes democráticos militares ou civis. Neste caso, a cobertura política deve vir em primeira instância de um grupo de governadores, declarando-se o legítimo governo do Brasil, com apoio do Congresso em seguida (se o Congresso ainda puder agir). Também é possível que Goulart renuncie sob pressão de sólida oposição militar, ou para “fugir” do país ou para liderar um movimento “populista” revolucionário. As possibilidades claramente incluem guerra civil, com alguma divisão horizontal ou vertical nas Forças Armadas, agravadas pela posse disseminada de armas nas mãos de civis dos dois lados.
11. Ao contrário dos vários grupos anti-Goulart que nos procuraram durante os últimos dois anos e meio, o movimento de Castelo Branco demonstra a perspectiva de apoio amplo e liderança competente. Se nossa influência for usada para evitar um grande desastre aqui – o que pode transformar o Brasil na China dos anos 60 – nesse grupo é que tanto eu quanto meus assessores acreditamos que nosso apoio deve ser colocado (os secretários Rusk e Mann devem notar que Alberto Byington* está trabalhando com esse grupo). Nós temos essa visão mesmo que Castello Branco seja afastado de sua posição no Exército.
* Alberto Byington era um industrial paulista que ajudou a articular o golpe
12. Apesar de sua força entre os oficiais, o grupo de resistência está preocupado com as armas e a possível sabotagem do abastecimento de combustível. Dentro da próxima semana vamos avaliar as estimativas das armas necessárias através de um contato com o general Cintra*, o braço direito do Castello Branco. As necessidades de combustível incluem combustível para a Marinha, que agora está sendo buscado por Byington, além de gasolina para motores e para a aviação.
* General Ulhoa Cintra
13. Dada a absoluta incerteza quanto ao timing de um possível incidente-gatilho (que poderia ocorrer amanhã ou a qualquer momento), recomendamos (a) que sejam tomadas medidas o mais rapidamente possível para preparar uma entrega clandestina de armas que não sejam de origem americana a apoiadores de Castello Branco em São Paulo, assim que as necessidades sejam definidas e os arranjos feitos. A melhor possibilidade de entrega parece ser em um submarino sem identificação a ser descarregado à noite em algum ponto isolado da costa do estado de São Paulo, ao sul de Santos, provavelmente perto ou em Iguape ou Gananeia (Cananéia); (b) isso deveria ser acompanhado por combustível (a granel, embalado ou ambos), também evitando a identificação do governo dos Estados Unidos, com entrega que espere o início ativo de hostilidades. A ação (DEPTEL 1281*) deve proceder.
*Telegrama enviado à Embaixada desde Washington: “Defesa (o Departamento de) providenciou a lista dos materiais solicitados e outras informações sobre o navio-tanque de petróleo discutidas com você. Urgentemente esperando sua avaliação da situação para dar os passos seguintes nesta ação e definir próximos passos vis-à-vis Brasil.”
14. O atendimento às sugestões acima pode ser suficiente para assegurar a vitória de forças amigáveis sem qualquer participação aberta, logística ou militar, dos Estados Unidos, especialmente se politicamente nossa intenção é dar reconhecimento imediato ao novo governo do Brasil. Deveríamos nos preparar sem demora para a contingência de uma intervenção aberta em um segundo estágio e também contra a possibilidade de ação soviética para apoiar o lado dos comunistas. Para minimizar as possibilidades de uma guerra civil prolongada e assegurar a adesão de um grande número de “band-wagon jumpers” (os que ficam em cima do muro), nossa habilidade em demonstrar compromisso e algum tipo de demonstração de força com grande rapidez pode ser crucial. Com esse objetivo e conforme nossas conversas em Washington, no dia 21 de março, uma possibilidade parece ser o envio de uma força-tarefa naval para manobras no Atlântico Sul, a poucos dias de distância de Santos. A logística deve seguir as especificações do South Brazil Contingency Plan (USSCJTFP-BRAZIL*), revisado aqui em 9 de março. Um porta-aviões seria muito importante pelo efeito psicológico. O contingente de fuzileiros navais poderia cumprir tarefas de performance logística definidas no South Plan. Instruções são aguardadas nesse ou em métodos alternativos, desde que com os objetivos acima mencionados.
* Planos de contingência militar que o Pentágono mantém em relação a todas as regiões do mundo, que passam por revisões constantes
15. Nós reconhecemos o problema de incerteza quanto ao período da necessidade dessas forças na área. Com crises quase diárias de intensidade variável aqui, no entanto, e a violência a ponto de se tornar epidêmica através de invasões de terra, confrontos entre grupos comunistas e democráticos nas ruas e com o crescendo das ações de Goulart com o objetivo de “atingir as reformas-de-base” até 24 de agosto (décimo aniversário do suicídio de Vargas), perigo real existe da irupção de guerra civil a qualquer momento. O único sinal convincente (em contrário) seria uma limpeza dos extremistas da guarda civil e militar do grupo palaciano. O episódio atual dos marinheiros rebeldes demonstra a fragilidade da situação e possível iminência de um confronto.
16. Estamos, enquanto isso, tomando medidas complementares com nossos recursos para fortalecer as forças da resistência. Isso inclui apoio clandestino a manifestações de rua pró-democracia (o próximo grande evento será no dia 2 de abril, no Rio, com outros ainda sendo programados), a difusão discreta de que o governo dos Estados Unidos está profundamente preocupado com os acontecimentos e o encorajamento de sentimento democrático e anti-comunista no Congresso, nas Forças Armadas, grupos amigáveis de estudantes e sindicalistas, igreja e empresas. Poderemos requisitar modestos fundos suplementares para outros projetos de ações clandestinas em futuro próximo.
17. Também acredito que seria útil, sem entrar em detalhes, uma resposta em entrevista coletiva do secretário de Estado ou do presidente indicando preocupação com informações sobre a deterioração econômica e a inquietude política no Brasil e a importância para o futuro do Hemisfério de que o Brasil, comprometido com suas raízes democráticas e tradições constitucionais, vai continuar seu progresso social e econômico sob a democracia representativa. Recomendamos que isso seja feito nos próximos dias.
18. Essa mensagem não é alarmista ou reação apavorada a um único incidente. Reflete as conclusões conjuntas da equipe da embaixada baseadas em uma longa corrente de ações e informação de inteligência que nos convenceram de que existe um perigo real e presente para a democracia e a liberdade no Brasil, que poderia conduzir esta nação enorme ao campo comunista. Se este fosse um país de menos importância estratégica para os Estados Unidos – tanto diretamente quanto no impacto que tem na América Latina – poderíamos sugerir um período de acompanhamento esperando que a resistência brasileira, sem ajuda, cuidasse do problema. Nós acreditamos que há uma grande possibilidade de que ela consiga fazer isso, dados os sentimentos básicos e as atitudes da maioria das pessoas e a força da democracia organizada, especialmente na metade Sul do país. O poder de Goulart e da presidência de enfraquecer e abalar a resistência é tão grande, no entanto, que nosso apoio manifesto, tanto moral quanto material e até a um custo substancial, pode ser essencial para manter a coluna da resistência brasileira. Não podemos perder tempo nos preparativos para tal ação. A alternativa de arriscar um Brasil comunista parece inaceitável, causando custos potencialmente muito maiores tanto em dinheiro quanto em vidas.”

Este e outros documentos em inglês sobre o golpe de 1964 AQUI

Publicado Viomundo.

sábado, 30 de abril de 2011

Palestra de Paulo Henrique Amorim

Palestra do jornalista Paulo Henrique Amorim na abertura da Etapa Bahia da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, na FLEM (CAB), em Salvador, em 14/11/2009.


sexta-feira, 29 de abril de 2011

Tentando apagar a história da ditadura, por Vladimir Safatle

Para filósofo Vladimir Safatle, professor da Universidade de São Paulo (USP), há um lugar que resiste à memória do horror e a fazer justiça às vítimas: o Brasil. Nenhum agente do Estado ditatorial (1964-1985), envolvido em crimes como sequestro, tortura, estupro e assassinato de dissidentes políticos, foi a julgamento e preso.

Em março, será lançado o livro O Que Resta da Ditadura (editora Boitemço), organizado por Safatle e Edson Teles. A obra tenta entender como a impunidade se forma e se alimenta no Brasil. Para Safatle,o Brasil continua uma democracia imperfeita por resistir a uma reavaliação do período da ditadura militar (1964-1985) e por manter uma relação complicada entre os Três Poderes.

Agência Brasil: O Brasil tem alguma dificuldade com o seu passado?
Vladimir Safatle: Existe um esforço de vários setores da sociedade em apagar a ditadura, quase como se ela não tivesse existido. Há leituras que tentam reduzir o período à vigência do AI-5 [Ato Institucional nº 5], de 1968 a 1979. E o resto seria uma espécie de democracia imperfeita, que não se poderia tecnicamente chamar de ditadura. Ou seja, existe mesmo no Brasil um esforço muito diferente de outros países da América Latina, que passaram por situações semelhantes, que era a confrontação com os crimes do passado. É a ideia de anular simplesmente o caráter criminoso de um certo passado da nossa história.

ABr: Há quem diga que o Brasil não teve de fato uma ditadura clássica depois de 1964, mas sim uma “ditabranda” se comparada à da Argentina e a do Uruguai, por exemplo.
Safatle: Essa leitura é do mais clássico cinismo. É inadmissível para qualquer pessoa que respeite um pouco a história nacional. Afirmar que uma ditadura se conta pela quantidade de mortes que consegue empilhar numa montanha é desconhecer de uma maneira fundamental o que significa uma ditadura para a vida nacional. A princípio, a quantidade de mortes no Brasil é muito menor do que na Argentina. Mas é preciso notar como a ditadura brasileira se perpetuou. O Brasil é o único país da América Latina onde os casos de tortura aumentaram após o regime militar. Tortura-se mais hoje do que durante aquele regime. Isso demostra uma perenidade dos hábitos herdados da ditadura militar, que é muito mais nociva do que a simples contagem de mortes.

ABr: Qual o reflexo disso?
Safatle: Significa um bloqueio fundamental do desenvolvimento social e político do país. Por outro lado, existe um dado relevante: a ditadura de certa maneira é uma exceção. Ela inaugurou um regime extremamente perverso que consiste em utilizar a aparência da legalidade para encobrir o mais claro arbítrio. Tudo era feito de forma a dar a aparência de legalidade. Quando o regime queria de fato assassinar alguém, suspender a lei, embaralhava a distinção entre estar dentro e fora da lei. Fazia isso sem o menor problema. Todos viviam sob um arbítrio implacável que minava e corroía completamente a ideia de legalidade. É um dos defeitos mais perversos e nocivos que uma ditadura pode ter. Isso, de uma maneira muito peculiar, continua.

ABr: Então, a semente da violência atual do aparato policial foi plantada na ditadura?
Safatle: Não é difícil fazer essa associação, pois nunca houve uma depuração da estrutura policial brasileira. É muito fácil encontrar delegados que tiveram participação ativa na ditadura militar, ainda em atividade. No estado de São Paulo, o ex-governador Geraldo Alckmin indicou um delegado que era alguém que fez parte do DOI-Codi [Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna]. Teve toda uma discussão, mas esse debate não serviu sequer para ele voltasse atrás na nomeação. Se você levar em conta esse tipo de perenidade dos próprios agentes que atuaram no processo repressivo, não é difícil entender por que as práticas não mudaram.

ABr: Estamos atrás de outros países, como Argentina e África do Sul, na investigação e julgamento de crimes cometidos pelo Estado?
Safatle: Estamos aquém de todos os países da América Latina. Nosso problema não é só não ter constituído uma comissão de verdade e justiça, mas é o de que ninguém do regime militar foi preso. Não há nenhum processo. O único processo aceito foi o da família Teles contra o coronel [Carlos Alberto Brilhante] Ustra, que foi uma declaração simplesmente de crime. Ninguém está pedindo um julgamento e sim uma declaração de que houve um crime. Legalmente, sequer existiram casos de tortura, já que não há nenhum processo legal. E levando em conta o fato de que o Brasil tinha assinado na mesma época tratados internacionais, condenando a tortura, nossa situação é uma aberração não só em relação à Argentina e à África do Sul, mas em relação ao Chile, ao Paraguai e ao Uruguai.

ABr: Que expectativa o senhor tem quanto ao funcionamento da Comissão Nacional da Verdade, prevista no Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3), para apurar crimes da ditadura?
Safatle: Uma atitude como essa é a mais louvável que poderia ter acontecido e merece ser defendida custe o que custar. O trabalho feito pelo ministro Paulo Vannuchi [secretário dos Direitos Humanos, da Presidência da República] e pela Comissão de Direitos Humanos é da mais alta relevância nacional. Acho que é muito difícil falar o que vai acontecer. A gente está entrando numa dimensão onde a memória nacional, a política atual e o destino do nosso futuro se entrelaçam. Existe uma frase no livro 1984, de George Orwell, que diz: “Quem controla o passado controla o futuro”. Mexer com esse tipo de coisa é algo que não diz respeito só à maneira que o dever de memória vai ser institucionalizado na vida nacional, mas à maneira com que o nosso futuro vai ser decidido.

ABr: Mas, antes mesmo da criação da Comissão da Verdade, os debates já estão muito acalorados.
Safatle: O melhor que poderia acontecer é que se acirrassem de fato as posições e cada um dissesse muito claramente de que lado está. O país está dividido desde o início. Veja a questão da Lei da Anistia. O programa do governo [PNDH 3] em momento algum sugeriu uma forma de revisão ou suspensão da lei. O que ele sugeriu foi que se abrisse espaço para a discussão sobre a interpretação da letra da lei. Porque a anistia não vale para crimes de sequestro e atentados pessoais. A confusão que se criou demonstra muito claramente como a sociedade brasileira precisa de um debate dessa natureza, o mais rápido possível. Não dá para suportar que certos segmentos da sociedade chamem pessoas foram ligadas a esses tipos de atividades de “terroristas”. É sempre bom lembrar que no interior da noção liberal de democracia, desde John Locke [filósofo inglês do século 17], se aceita que o cidadão tem um direito a se contrapor de forma violenta contra um Estado ilegal. Alguns estados nos Estados Unidos também preveem essa situação.

ABr: O termo “terrorista” é usado por historiadores que não têm qualquer ligação com os militares e até mesmo por pessoas que participaram da luta armada. Usar a palavra é errado?
Safatle: Completamente. É inaceitável esse uso que visa a criminalizar profundamente esse tipo de atividade que aconteceu na época. A ditadura foi um estado ilegal que se impôs através da institucionalização de uma situação ilegal. Foi resultado de um golpe que suspendeu eleições, criou eleições de fachada com múltiplos casuísmos. Podemos contar as vezes que o Congresso Nacional foi fechado porque o Executivo não admitia certas leis. O fato de ter aparência de democracia porque tinham algumas eleições pontuais, marcadas por milhões de casuísmos, não significa nada. No Leste Europeu também existiam eleições que eram marcadas desta mesma maneira.Um Estado que entra numa posição ilegal não tem direito, em hipótese alguma, de criminalizar aqueles que lutam contra a ilegalidade. Por trás dessa discussão, existe a tentativa de desqualificar a distinção clara entre direito e Justiça. Em certas situações, as exigências de Justiça não encontram lugar nas estruturas do Direito tal como ele aparecia na ditadura militar. Agora, existem certos setores que tentam aproximar o que aconteceu no Brasil do que houve na mesma época na Europa, com os grupos armados na Itália e na Alemanha. As situações são totalmente diferentes porque nenhum desses países era um Estado ilegal. E não há casos no Brasil de atentado contra a população civil. Todos os alvos foram ligados ao governo.

ABr: Os assaltos a banco não seriam atentados às pessoas comuns que estavam nas agências?
Safatle: Todos os que participaram a atentados a bancos não foram contemplados pela Lei da Anistia e continuaram presos depois de 1979. Pagaram pelo crime. Isso não pode ser utilizado para bloquear a discussão. Dentro de um processo de legalidade, de maneira alguma o Estado pode tentar esconder aquilo que foi feito por cidadãos contra eles, como se fossem todos crimes ordinários. Se um assalto a banco é um crime ordinário, eu diria que a luta armada, a luta contra o aparato do Estado ilegal, não é. Isso faz parte da nossa noção liberal de democracia.

ABr: Que democracia é a nossa que tem dificuldades de olhar o passado?
Safatle: É uma democracia imperfeita ou, se quisermos, uma semidemocracia. O Brasil não pode ser considerado um país de democracia plena. Existe uma certa teoria política que consiste em pensar de maneira binária, como se existissem só duas categorias: ditadura ou democracia. É uma análise incorreta. Seria necessário acrescentar pelo menos uma terceira categoria: as democracias imperfeitas.

ABr: O que isso significa?
Safatle: Consiste em dizer basicamente o seguinte: não há uma situação totalitária de estrutura, mas há bloqueios no processo de aperfeiçoamento democrático, bloqueios brutais e muito visíveis. Existe uma versão relativamente difundida de que a Nova República é um período de consolidação da democracia brasileira. Diria que não é verdade. É um período muito evidente que demonstra como a democracia brasileira repete os seus impasses a todo momento. O primeiro presidente eleito recebeu um impeachment, o segundo subornou o Congresso para poder passar um emenda de reeleição e seu procurador-geral da República era conhecido por todos como “engavetador-geral”, que levou a uma série de casos de corrupção que nunca foram relativizados. O terceiro presidente eleito muito provavelmente continuou processos de negociação com o Legislativo mais ou menos nas mesmas bases. Chamar isso de consolidação da estrutura democrática nacional é um absurdo. Os poderes mantêm uma relação problemática, uma interferência do poder econômico privado nas decisões de governo. Um sistema de financiamento de campanhas eleitorais que todos sabem que é totalmente ilegal e é utilizado por todos os partidos sem exceção.

Fonte: Carta Capital

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Clarice Herzog: “Eu não anistio os torturadores do Vlado”

Entrevista com a publicitária Clarice Herzog, viúva de Vladimir Herzog.
Por Cylene Dworzak Dalbon

25 de outubro de 1975, Rua Tutóia, cidade de São Paulo. Nas dependências do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), um homem é torturado com pancadas e choques elétricos. Seus companheiros, na sala ao lado ouvem seus gritos.

O homem recusa-se a assinar um suposto depoimento por não admitir que as informações constantes naquele pedaço de papel sejam verdadeiras. Ele não escrevera nenhuma palavra daquilo. Em um ato de indignação, rasga o papel. E num ato de maior indignação ainda, mesclado a ira, seu torturador o esbofeteia. Os amigos, na outra sala, não ouvem mais seus gritos.

Algumas horas mais tarde, dentro de uma cela no mesmo departamento, uma foto do homem morto, amarrado por uma tira de pano em um pequeno pedaço de ferro no alto da cela. O Inquérito Policial Militar, IPM dá como causa da morte suicídio por enforcamento. Esta era a versão oficial sustentada pelos militares e ignorada pela família. Vladimir Herzog havia sido assassinado e seus torturadores haviam montado uma farsa grotesca para encobrir a barbaridade que haviam feito.

O relato acima caberia muito bem em um romance policial. Mas não é ficção. O fato tenebroso e covarde existiu. Quando os gritos silenciaram, Vladimir Herzog estava morto. Inicia-se então, o começo da luta pela abertura política na história ditatorial que acabaria de fato, 10 anos depois, em 1985. Vlado, como era conhecido por familiares e amigos, é hoje um símbolo, e não só para os jornalistas. E está tão vivo na memória de quem presenciou e viveu a história, como na de pessoas que se apaixonam pela emocionante história de vida de Vlado e se revoltam com a monstruosidade e tristeza de sua morte.

Em conversa exclusiva com o Jornal Segundas Intenções, a publicitária Clarice Herzog fala do terrível outubro de 1975, quando seu marido, o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado dentro das dependências do DOI-CODI pelos órgãos de repressão da ditadura.


O outubro de 1975


“O outubro de 1975 foi complicadíssimo. Ficaram na memória as coisas relacionadas ao que aconteceu com o Vlado. No começo do mês vários jornalistas foram presos. Estava havendo inclusive um encontro nacional de jornalismo e mesmo assim as prisões continuavam. Foram presos muitos jornalistas ligados ao Vlado e da TV Cultura, o Markum, o Anthony, Rodolfo Konder, o Sérgio Gomes. Foi um momento extremamente tenso. Esperávamos que o Vlado fosse preso devido a essas prisões, e discutimos muito sobre qual seria o teor de seu depoimento – o que nunca passou pelas nossas cabeça é que ele acabaria sendo morto. Vlado, naquele momento estava no Partido [Comunista Brasileiro]. Ele nunca foi muito ligado à política, ele não era comunista – aliás era bastante crítico ao partido. Na verdade, o Vlado era um intelectual, ligado a teatro, cinema, que desejava um mundo melhor, um mundo onde as idéias pudessem ser discutidas e respeitadas. Naquela época existiam duas forças contra a ditadura militar: uma era a igreja e a outra o PCB. Como o Vlado era judeu, optou pelo Partido – a sua área de atuação como militante era a discussão da situação cultural no país – a produção artística, nos vários níveis, estava sendo totalmente massacrada pela censura. O motivo da forte repressão contra o PCB, é que ele estava se tornando uma nova e forte frente e enfrentando a ditadura. Mas aconteceu o que não esperávamos que acontecesse: afinal, apesar do Vlado estar envolvido com o partido comunista, tínhamos empregos, passaporte, residência fixa e não éramos envolvidos com a luta armada.”


Londres


“Depois do término do contrato do Vlado com a BBC em Londres, eu retornei primeiro com as crianças e o Vlado ficou mais três meses fazendo um curso sobre TV Educativa. Era pra ele chegar ao Brasil dia 15 de dezembro de 1968 (o AI-05 foi no dia 13). Mas ele não chegou. Antes de vir para o Brasil, ele passou por Roma para se despedir do [Fernando] Birri [cineasta e guru de Vladimir Herzog]  e lá em Roma viu a manchete no jornal: “Ditadura Militar no Brasil”. E aí ficou a dúvida, se voltava pra Londres, se vinha para o Brasil. E durante duas semanas permanecemos nessa dúvida. Mas a sensação que nós tínhamos é, mesmo com o AI5 seria possível fazer alguma coisa aqui, valia a pena tentar.


O grito da sociedade e o silencio dos judeus


“A morte do Vlado foi um basta. A sociedade civil percebeu que aquilo foi a gota d´água. Na hora em que ele morreu houve uma movimentação. Ele era muito conhecido no Brasil e no exterior; então todo mundo ficou sabendo.

A comunidade judaica nunca deu apoio pra nada. Isso é muito importante que se deixe claro. Não havia rabino no velório nem no enterro do Vlado. O culto ecumênico aconteceu graças ao D. Paulo [Evaristo Arns] – aliás, Dom Paulo também esteve presente no velório. Não houve apoio nenhum da comunidade judaica, muito pelo contrário. “Tive apoio de amigos judeus, mas não da comunidade enquanto instituição.”


Correio Brasiliense


“A maneira como foi feita a matéria foi muito sensacionalista, o Correio Brasiliense foi ‘marrom’. Realmente, reconheci a foto de frente como sendo do Vlado; as outras não. A pessoa fotografada era muito parecida com ele, mas houve um engano da minha parte, que só se esclareceu quanto o Nilmário Miranda  (Ministro da Comissão dos Direitos Humanos) e o General chefe da segurança do presidente Lula estiveram aqui e me mostraram o dossiê completo da pessoa que tinha sido fotografada e aí percebi que realmente aquele não era o Vlado.”


A ação judicial


“Foi um processo importante porque houve um resgate da justiça brasileira, do judiciário, e isso fez com que outras famílias também entrassem com o processo contra a União. Não pleiteei indenização porque queria que fosse reconhecido publicamente que o Vlado não havia se matado e sim, que havia sido assassinado; e eu tinha medo de que me pagassem a indenização sem qualquer processo porque afinal o Vlado estava sob proteção do Estado.


Clara Charf e Carlos Marighela


“Quando voltei de Londres, eu queria ajudar de alguma forma. Fui então apresentada a Clara Charf que na época tinha um nome de guerra, que eu não lembro qual era. Ela se encontrava, vez ou outra, com o companheiro dela. E quando ia com ele em casa, o Vlado e eu permanecíamos no andar de cima – não queríamos saber quem era a pessoa que estava na clandestinidade. Mas, um dia tive um contato breve com o companheiro da Clara porque ela comentou com ele que eu havia perdido um tio assassinado durante o Estado Novo. Então, ele subiu as escadas e me disse: fui companheiro do seu tio na prisão e posso lhe dizer que ele foi um combatente muito corajoso. E eu não sabia que ele era o Marighela, e nem queria saber. Eu tinha medo de me envolver demais.”


Anistia


“Eu não anistio os torturadores do Vlado. A minha opinião sobre anistia é essa.”


32 anos depois


“Este ano o Vlado completou 70 anos. Dói. É uma dor amenizada, claro, mas ela sempre existe. É uma cicatriz que fica. Pode não estar mais inflamada, mas cada vez que se olha pra ela, lembra-se de toda a dor.”

sábado, 23 de abril de 2011

Nos porões da tortura

Reportagem do Jornal da Record sobre centros clandestinos de tortura durante o regime militar no Brasil.
Reportagem de Rodrigo Vianna.
Produção de Tony Chastinet, Luiz Malavolta e Paulo T.
Edição de Ângela Canguçu.
Exibido em 16, 17, 18 e 19 de agosto de 2010

A primeira reportagem conta a história do sítio "31 de março de 1964". A segunda reportagem conta a história do empresário que emprestou o sítio usado pelos militares como centro clandestino de detenção e tortura. A terceira reportagem mostra a rede de contatos do empresário que emprestou o sítio usado pelos militares como centro clandestino de detenção e tortura. A última reportagem mostra o centro clandestino de torturas de Petrópolis (RJ) e a Operação Condor.


sexta-feira, 22 de abril de 2011

PROCESSO


PROCESSO

Foi você, seu filho,
(soa um tapa, voa uma pata)
Seu pai, sua mãe, seu amigo,
(e o fio corre para a tomada)

Foi você, seu cão
(a mão no interruptor)
Sua namorada, seu irmão,
(o murro, o urro ininterrupto)

Foi você, seu maldito,
foi seu sangue
vermelho, (água, sal,
o mergulho no tanque)

Foi você, sua mão, seu olho,
sua unha, seu dente, seu corpo,
seu pulso sem impulso, seu lábio roxo,
seu coração sem ação, seu morto.

Otoniel Santos Pereira

Retirado do Jornal “EX-”

Jornal EX-: Produzido entre 1973 e 1975, com periodicidade mensal, o jornal EX- foi um dos expoentes da chamada mídia alternativa durante a ditadura militar, reconhecido por suas reportagens aprofundadas, textos ácidos e imagens provocativas.